Nova lei facilita acesso das vĂtimas às medidas protetivas de urgĂȘncia.
Mulheres que sofrem violĂȘncia doméstica agora podem conseguir medida protetiva de urgĂȘncia mesmo sem inquérito policial, boletim de ocorrĂȘncia ou ajuizamento de ação penal.
A mudança entrou em vigĂȘncia nesta quinta-feira (20/4), a partir da Lei 14.550/2023, sancionada pelo presidente Luiz InĂĄcio Lula da Silva (PT), que acrescenta um artigo à Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
A nova norma determina que as medidas protetivas de urgĂȘncia sejam concedidas a partir de depoimento a autoridade policial, "independentemente da tipificação penal da violĂȘncia, do ajuizamento de ação penal ou cĂvel, da existĂȘncia de inquérito ou registro de boletim de ocorrĂȘncia".
A lei também diz que não hĂĄ prazo para a vigĂȘncia da medida que afasta o agressor da vĂtima. "As medidas protetivas de urgĂȘncia vigorarão enquanto persistir risco à integridade fĂsica, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes", afirma o texto.
Especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor JurĂdico afirmam que a novidade terĂĄ impacto importante na proteção das mulheres em situação de violĂȘncia ou ameaça e tem potencial inclusive para ajudar a diminuir o nĂșmero de feminicĂdios no Brasil.
Para a jurista Soraia Mendes, a lei é uma garantia de maior proteção às vĂtimas de violĂȘncia doméstica.
"A lei veio para pacificar controvérsias existentes em relação à autonomia das medidas protetivas. Em termos prĂĄticos, é uma garantia de efetividade e, por consequĂȘncia, de maior proteção às vĂtimas."
"Por outro lado, é lamentĂĄvel que tenha de ser 'desenhado' em lei aquilo que, com um mĂnimo esforço hermenĂȘutico, e igual quantia de conhecimento sobre a eficĂĄcia dos direitos fundamentais e dos documentos internacionais de direitos humanos, jĂĄ seria assegurado. Não deixa de ser um atestado da miséria intelectual em que estamos imersos", pondera ela.
Segundo Isabela Castro de Castro, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP, a alteração é fundamental para aumentar a proteção às vĂtimas.
"Tudo vai ser simplificado: a vĂtima vai procurar a autoridade policial ou judicial simplesmente para requerer uma medida protetiva, sem precisar ingressar com processo", explica ela. "Muitas vezes, a mulher não quer procurar a Justiça, mas estĂĄ em situação de perigo. Sabemos disso porque, quando analisamos as vĂtimas de feminicĂdio, vemos que a maioria delas não tinha medidas protetivas em vigor."
A advogada também ressalta a questão do prazo de vigĂȘncia das medidas protetivas: "Havia muita discussão sobre a existĂȘncia de prazo de vigĂȘncia dessa medida, e agora não tem mais prazo, ela vai vigorar enquanto for necessĂĄria".
"Por fim, o novo texto também afasta as questões de Ăąmbito de aplicação da lei. Ou seja, todas as questões permeadas por estereótipos não vão mais ter qualquer legitimidade. Isso tem por base uma determinação do CNJ, de março deste ano, que tornou obrigatória a observação do protocolo de gĂȘnero nos processos", explica.
Carlos Eduardo Gonçalves, advogado criminalista e sócio do escritório Lube e Gonçalves Advogados, lembra a alta recente no nĂșmero de feminicĂdios no paĂs, situação que ele também acredita que poderĂĄ ser melhorada com a nova lei.
"São alterações importantes e estratégicas para cessar questionamentos sobre a autonomia das medidas protetivas, a existĂȘncia ou não de prazo para sua vigĂȘncia e Ăąmbitos de aplicação da lei", afirma ele. "A partir de agora, não se deve mais avaliar se um crime é grave ou não para decretação da medida, mas, sim, o risco à integridade fĂsica, psĂquica e patrimonial da mulher."
Para Gonçalves, o novo texto legal afasta algumas decisões judiciais recentes baseadas em anĂĄlises apenas factuais ou marcadas por estereótipos, como nos casos em que se afirma que a mulher "usa" a lei para obter vantagens econômicas ou patrimoniais.
"Assim como a Constituição Federal é clara no que tange à igualdade entre homens e mulheres, a Lei Maria da Penha constata e reforça a necessidade da proteção da mulher contra as incontĂĄveis violĂȘncias sofridas no Ăąmbito doméstico e familiar. Num paĂs em que o feminicĂdio cresceu 5% em 2022, com 1,4 mil mortes, nunca é demais reafirmar a condição vulnerĂĄvel da mulher", ressalta o advogado.
No entendimento das advogadas Mariana Ortiz e Débora Perez, da banca Tofic, Simantob Perez e Ortiz Advogados, a mudança aumenta o instrumental jurĂdico de proteção às mulheres, desburocratizando o acesso à Justiça.
"A lei possibilita expressamente que as medidas protetivas sejam implementadas a partir do simples relato da vĂtima em uma delegacia de polĂcia. Na prĂĄtica, ao tomar contato com relato que envolva violĂȘncia contra a mulher, o delegado deverĂĄ encaminhar esse relato ao juiz de Direito, que poderĂĄ conceder de imediato medidas como o afastamento do agressor", afirmam elas.
Para as advogadas, a mudança também ampliou a incidĂȘncia da lei ao contemplar todos os casos de violĂȘncia contra mulher no Ăąmbito doméstico, familiar ou dentro de relação Ăntima de afeto. "Alguns tribunais entendiam que a lei só se aplicava quando identificada uma motivação de gĂȘnero, o que excluĂa, por exemplo, agressões a irmãs, filhas ou até companheiras com motivação patrimonial."
Varas sobrecarregadas
De acordo com o promotor André LuĂs Alves de Melo, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a mudança pode ter um impacto negativo: sobrecarregar as varas criminais, sobretudo em cidades pequenas, que não tĂȘm vara especializada em violĂȘncia doméstica.
"O maior problema é que, no interior, sobrecarregam as varas criminais e não melhoram a estrutura. Em tese, se não hĂĄ processo criminal, a medida protetiva tem de ser apreciada por vara cĂvel", explica o promotor. "Em Minas Gerais, temos cidades com 400 mil habitantes e sem vara especĂfica de violĂȘncia doméstica. Onde não tem vara especĂfica, o que ocorre é sobrecarregar a vara criminal."
Além disso, a advogada criminalista Gabriela Rodrigues alerta que hĂĄ o risco de a facilidade para conseguir a medida protetiva acabe se sobrepondo à instauração de inquérito e apuração dos delitos pelo Ministério PĂșblico.
"Não podemos ignorar que essa é uma demanda das vĂtimas, as quais muitas, em diversas situações, querem apenas a concessão da medida protetiva. Mas, na prĂĄtica, quando as mulheres buscam apenas essa medida, o que se percebe é uma certa acomodação de um fato delituoso em tipos penais de natureza privada, o que, no geral, traduz-se em arquivamentos de boletins de ocorrĂȘncia", argumenta ela.
"O combate à violĂȘncia doméstica não se esgota na concessão das medidas protetivas, ainda que seja apenas o desejo da vĂtima, entendendo-se que o desejo de não dar prosseguimento ao processo pode estar relacionado a uma condição de violĂȘncia psicológica."